domingo, 24 de agosto de 2008

TV Digital no Brasil: O monopólio em alta definição (Parte I)

Imagine assistirmos à uma TV com imagem e som mais nítidos, sem aqueles ruídos e chuviscos comuns, porém com a mesma programação a que estamos acostumados a receber em casa, sem mudanças no conteúdo!? É a TV Digital brasileira que, desde dezembro de 2007, iniciou os testes na cidade de São Paulo num evento rodeado por um seleto grupo de convidados (radiodifusores, autoridades do governo federal e artistas globais). Hoje, além da capital paulista, as cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e a capital federal, Brasília, estão iniciando os testes de transmissão em sinal digital. A previsão é de que o sinal analógico seja extinto até 2016, e em 2013 todo o país seja coberto pelo digital.

Mas antes de entrarmos no mérito da “nova” TV, faz-se imprescindível retomarmos de forma breve, porém contextualizada, o que se passou desde 2003 até o início das transmissões do sinal digital, ano passado.

As discussões acerca da implantação do modelo de TV Digital que entraria em vigor no Brasil tiveram início em 2003. Na época, o texto assinado pelo presidente Lula (decreto nº 4901/03) instituía o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T), estruturava dois comitês (de gestão e de desenvolvimento), criava um Conselho Consultivo aberto à participação da sociedade civil e “previa questões de viés social como o compromisso com a inclusão digital e a democratização de informações, o fortalecimento de um sistema de educação à distância, além do estímulo à pesquisa e à indústria nacional”. Em outras palavras, o cenário que se vislumbrava naquele momento era o de mudanças profundas e de caráter democrático na televisão brasileira.

A propósito, a chegada de Hélio Costa ao MiniCom, em 2005, representou para muitas entidades que lutam pela democratização da mídia no País o esvaziamento do debate com a sociedade (no Conselho Consultivo) e uma identificação exclusiva com os interesses dos radiodifusores, especialmente com os das Organizações Globo (a família Marinho).

A digitalização da TV no Brasil foi um projeto coordenado pelo Ministério das Comunicações que contou com a participação de 82 universidades e centros de pesquisa em um consórcio junto ao governo federal. O objetivo era o desenvolvimento de componentes e de tecnologias na construção de um modelo brasileiro de televisão digital, além dos estudos e subsídios técnicos oriundos do CPqD, órgão então responsável pela produção de documentos que passariam a orientar o desenvolvimento do SBTVD. Como resultado dos trabalhos, que se iniciaram em 2003, um relatório foi produzido e entregue ao presidente Lula.

Padrões em disputa e a definição pelo monopólio na TV

Pelo menos três modelos internacionais de televisão digital, além do brasileiro, disputavam a preferência do Governo Lula: o americano (ATSC), o europeu (DVB) e o japonês (ISDB). Este último padrão era o defendido pelas grandes empresas de comunicação privadas do país e também pelo Ministério das Comunicações. Já o europeu tinha a preferência das empresas de telefonia móvel, que enxergavam na tecnologia européia a possibilidade de conquistar o mercado do setor audiovisual e de concorrer com as empresas de radiodifusão.

Em 2006, vem a decisão do governo federal, que adotou então, por meio do decreto nº 5.820, o padrão japonês (ISDB) na transição do atual modelo de transmissão analógica para o digital na televisão aberta brasileira. Na verdade, um modelo híbrido, nipo-brasileiro. Algumas promessas foram feitas ao Brasil pelos japoneses durante o processo de definição do padrão para a TV Digital. Dentre elas, a instalação de uma fábrica de dispositivos (semicondutores) que seriam utilizados com a chegada da nova TV.

A promessa, feita na informalidade, sem qualquer garantia de que seria cumprida, não se concretizou até hoje. Com isso, o Brasil começa a era digital na sua televisão sem uma política industrial que garanta o desenvolvimento e a produção de tecnologia nacional. Não bastasse a frustração, o modelo então escolhido é revelou-se caro tanto para as emissoras de TV quanto para os usuários. O ISDB-T só existe no Japão, não há experiências com a tecnologia em outros países do mundo.

Coincidência ou não, o governo (então representado pela Casa Civil da Presidência da República e pelo Ministério das Comunicações) escolheu exatamente o modelo preferido pelos mandatários das grandes redes de televisão. Mais que isso, o governo perdeu uma oportunidade inominável e, por que não, histórica de causar mudanças importantes no atual sistema de radiodifusão brasileiro, extremamente concentrado quanto à propriedade das emissoras e homogeneizado em relação ao conteúdo produzido.

Além disso, representantes de setores da sociedade civil organizada e de entidades envolvidos com a democratização da comunicação no país criticaram também a ausência de discussões com vistas à implantação de um novo marco regulatório antes que a decisão por um padrão de TV digital fosse concretizada, e alertaram para as possibilidades de mudanças na legislação da radiodifusão ocorrerem durante a transição do modelo de transmissão digital para o analógico. Este fato atinge em cheio os interesses dos grandes grupos de comunicação e representa a continuidade do atual sistema midiático brasileiro.

O que significa o ISDB-T para a TV Digital brasileira

Alta definição no som e na imagem, interatividade, portabilidade e mobilidade. Essas são as principais características do modelo japonês escolhido pelo Governo Federal para modular o sinal da TV aberta no Brasil. Dentre as qualidades técnicas da nova TV, a que mais vem ganhando destaque na propaganda do governo e das grandes redes de televisão privadas é a oferta de mais qualidade na imagem e no som.

No entanto, a TV Digital não deve ser vista de forma simplificada, reduzindo sua grandeza à simples oferta de imagem e som mais nítidos ao telespectador. O debate vai muito mais além e alcança a multiprogramação. Ou seja, numa freqüência onde hoje cabe apenas uma programação, com a TV Digital existe a possibilidade de um canal ser dividido em quatro, com diferentes programações. Mas para que isso aconteça, é preciso que as emissoras de TV renunciem à transmissão em alta definição (HDTV) e adotem o modo standard, com um grau de definição um pouco mais inferior se comparado ao HDTV, porém com qualidade superior ao que temos hoje. Tendo em vista o modelo de negócios sustentado pelas redes de TV, é quase impossível pensar em multiprogramação. Isso significa ter que dividir o bolo publicitário e seus lucros, hoje extremamente concentrados.

A partir dessa constatação, cabe uma pergunta: num contexto em que a televisão brasileira carece de diversidade em seu conteúdo, qual das duas possibilidades acima seria a ideal para o telespectador, cansado da mesmice televisiva que invade a programação de todas as emissoras comerciais? A multiprogramação apresenta-se como uma oportunidade de democratizar a produção de conteúdo audiovisual da TV aberta, enquanto a alta definição é a garantia da continuidade da mesmice, acrescida do diferencial proporcionado pela imagem e o som perfeitos.

Esse confronto em nenhum momento ganhou evidência no decorrer das discussões sobre a TV Digital na mídia de massa nem pelo Governo Federal, que vendeu a alta definição como uma grande conquista dele. Mas por outro lado, foi incessantemente feito por entidades que lutam em favor da democratização da mídia no país. Elas, por sua vez, foram alijadas do processo de definição do padrão para a nova TV.

Sobre a mobilidade e a portabilidade, o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T) poderá ser captado em automóveis e nos aparelhos celulares mais modernos que dispõem dessa tecnologia, o que será para poucos privilegiados.

Quanto à interatividade, pouco se sabe quando o brasileiro vai poder usufruí-la de fato. Por enquanto, as notícias dão conta de que o Ginga – programa desenvolvido por duas universidades brasileiras e que vai permitir a interação entre telespectadores e emissoras de TV – ainda não está disponível nos conversores (set-top-boxes) à venda no mercado. Ou seja, a TV Digital começa desfalcada de uma de suas principais inovações, a interatividade.

Este artigo continua semana que vem!

Até lá!

Nenhum comentário: